domingo, 13 de março de 2016

Poema da semana de 14 a 18 março




 AQUI

Aqui entre os juncos e as flores do lótus,
compreendi que o inferno e o céu,
por mais que os deuses e os livros nos levem
a pensar o contrário, estão no coração do homem.
Eu conheci ambos deambulando por dentro de mim
e fazendo da sombra um desejo de luz
e da luz um secreto desejo de sombra.
Não foi o sol que me queimou o rosto,
foi o lume das inquietações fatais,
e quedei-me assim, apátrida e só,
numa terra a que chamo minha
mas que faz o longe tornar-se fatalidade.

(…)Sempre encaminhei os meus passos na direcção da luz,
mas foi a treva que encontrei, fixando os pedaços
de reboco que se soltam do tecto
presos ao voo dos besouros, enquanto
eu me perco no labirinto da minha solidão.

Vê como eu morro devagar
enquanto a chuva desenha na poeira
as metáforas do Outono e do assombro.
Vê como eu apodreço à ilharga da música
que sai do interior das conchas
no sítio onde os poetas há muito
deixaram de escrever e de sonhar.
Vê como eu me torno estrangeiro absoluto
numa terra que quer ser minha
mas que eu não consigo guardar no coração
como coisa essencial da minha vida.


Wenceslau de Moraes (1854-1929)
 in "O Profeta do Orvalho", edição de José Jorge Letria, 2004

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