terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Assim é que é!...


Poema da semana de 18 a 22 de fevereiro

     Os bons dias feios
Há dias feios feios. Olha-se para o céu e não há céu. Vai-se ao mar e o mar está sujo e a areia está barrenta. Passeia-se e não se vê nada. O nevoeiro tapa as vistas. Sobressaem só as cores mais vivas dos prédios mais grotescos.
É um alívio. A beleza também cansa. Faz bem tirar umas férias dela. Repara-se mais nas pequenas belezas das coisas próximas: as pilhas de livros, as diferenças entre as nozes, o cheiro da casca de uma laranja.
Não há distracções. Os livros lêem-se mais depressa. A decisão de ficar em casa é automaticamente tomada. Poupa-se tempo. Trabalha-se com mais calma. Tem-se mais juízo. Gasta-se menos gasolina.
Os dias feios são o tempo em obras. A água da chuva é essencial para a próxima Primavera e para as primeiras frutas. São problemas de canalização que estão a ser resolvidos. Há montanhas de areia para mover.
Se formos passear, os montes estão cheios de plantas e flores acabadas de nascer. Atrás dos dias feios há uma Primavera de Janeiro, um ano novo em ervas novas, tudo escondido pela falta de luz e pelo frio.(…)
Miguel Esteves Cardoso, in Público, 16 de Janeiro de 2014

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Poema da semana de 12 a 18 de fevereiro


   Aqui
Aqui, deposta enfim a minha imagem,
Tudo o que é jogo e tudo o que é passagem,
No interior das coisas canto nua.

Aqui livre sou eu — eco da lua
E dos jardins, os gestos recebidos
E o tumulto dos gestos pressentidos,
Aqui sou eu em tudo quanto amei.

Não por aquilo que só atravessei,
Não pelo meu rumor que só perdi,
Não pelos incertos actos que vivi,

Mas por tudo de quanto ressoei
E em cujo amor de amor me eternizei. 

Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'Dia do Mar' 

Assim é que é!...


terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Assim é que é!...


Poema da semana de 4 a 8 de fevereiro











 A Palavra Mágica
Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.

Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
não desanimo,
procuro sempre.

Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo
minha palavra.

Carlos Drummond de Andrade,
in 'Discurso da Primavera'